Rufus: quase humano.
Chegou o dia. Atendendo a pedidos, vou contar para vocês minha maravilhosa passagem pelo canto coral, umas das atividades musicais mais prazerosas que existem, altamente recomendável a todos, claro.
Quando fiz USP, lá em minha saudosa Sampa, aos 21 aninhos entrei para o Coral da universidade. Eram vários grupos, por volta de 7 ou 8. Hoje fiquei sabendo que já beiram uns 15... O nível era altíssimo: profissionais do canto, regentes, várias salas com vários pianos para ensaios (já passei inúmeras tardes por lá, tocando-os...), aulas de harmonia, percussão, regência, técnica vocal, enfim, um universo mágico à parte.
Meu grupo era regido pelo talentoso Tiago Pinheiro, filho do não menos talentoso Benito Juarez, fundador do Coralusp, regente da melhor orquestra sinfônica que há nesse país, a de Campinas. Sim, montamos peças maravilhosas com essa orquestra...
Aliás, os Juarez eram uma família muito musical. O André, percussionista, vi tempos atrás tocando vibrafone com o quarteto do Jô Soares. A Carmina Juarez já é uma cantora de talento nacionalmente reconhecido – viram a predileção do Benito por música? Até o nome de sua filha é uma referência à Carmina Burana, do Orff...
Convivi com todo esse pessoal por uns 3 anos, claro, até sair de Sampa e voltar para o interiorrrrrrrr...
Meus grupos (participei de 3) montavam geralmente peças a capella (para quem não sabe, músicas sem acompanhamento instrumental). O mais legal é que fazíamos peças coreografadas, com mímicas, brincadeiras, danças, dependia muito de cada estilo das músicas . Um sucesso. Quando todos os grupos se juntavam, formando o denominado Corão (perto de umas 400 ou 500 pessoas), montávamos peças de grande repertório, como a 9ª de Beethoven, Carmina Burana, O Guarani, e a polêmica peça Carnavais, do Francis Hime – esta história eu conto outro dia... Por fala nisso, morram de inveja: eu conheci o Hime pessoalmente! (ele é bem alto...). Ele levou uns dez anos escrevendo essa peça...
Bem, Carmina Burana dispensa apresentações. Até hoje guardo a partitura dela. Apresentamos essa peça em Campinas, e em vários teatros de Sampa, como o Cultura Artística e o Municipal (maravilhoso por dentro...). Tiago Pinheiro, com apenas 17 ou 18 anos, fez a parte solista do barítono. Isso é que é talento... “Omnia sol temperate, purus et subtilis...”
Claro, apresentamo-nos no Festival de Inverno de Campos do Jordão, um sonho de cidade – todo brasileiro deveria aparecer por lá pelo menos uma vez na vida... Vi nuvens, literalmente, abaixo de meus pés... rs... Cantamos no teatro principal, com coro e orquestra (lembro-me até hoje: Aleluia, do Villa-Lobos), cantamos a capella na Igreja do Capivari... Um festa. Como disse, bons tempos aqueles...
Após uns dois anos, eu consegui uma proeza há muito desejada: entrar para o grupo “de elite” do Coralusp, o Oechantus, regido pela mais que talentosa Helena Starzinsky. Este grupo exigia muita experiência vocal e, principalmente, leitura musical fluente. Simples: nos outros grupos, que não exigiam conhecimento musical, trabalhava-se meses em apenas algumas músicas. Nesse, pegava-se a partitura e a regente dizia: “uma ou duas semanas para estar pronto”. E ficava mesmo! Podia ser uma música em provençal, alemão antigo, latim, húngaro (!), Rapa-nui (idioma da antiga Ilha de Páscoa), espanhol, italiano, francês, o que fosse... Eu até ajudava a passar alguns naipes de voz ao piano, com os tenores e os baixos... E montamos cada peça que não dá pra descrever para vocês, gentes, de tão maravilhosas... Só ouvindo: Astor Piazzolla, Debussy, Clément Janequin, Ravel, J.S. Bach, Villa-Lobos, Monteverdi, muitas músicas populares com belos arranjos...
Querem saber qual a peça mais emocionante, mais linda, mais bela e envolvente que já montei até hoje? Um moteto de Natal do Johann Sebastian Bach (meu ídolo e professor musical...), chamado “Singet dem Hern ein neues Lied”. Para terem idéia da genialidade do homem, a peça, de longa duração, foi escrita para dois corais, que cantam simultaneamente, sem contar todos os naipes de voz, que se dividem: duas linhas para sopranos, duas para tenores, duas para baixo, etc. Coisa de gênio! E música de arrepiar, simplesmente...
Agora, para terminar, um fato interessante do qual participei: a primeira música que abre o Catulli Carmina (peça do Orff para quatro pianos e percussão) era em Latim antigo, basicamente um jogo de palavras provocativos entre jovens e velhos falando sobre o amor e o sexo. Ninguém sabia direito o que dizia, então perguntaram se haveria alguém do coral que pudesse traduzir ”aquilo”. Eu tinha feito um ano de latim básico na faculdade, então aceitei a empreitada. Com um dicionário e lançando mão de meus parcos conhecimentos de gramática latina, consegui traduzir o texto (querem saber? Vou procurá-lo e colocarei aqui para vocês se divertirem... rs...). Foi um sucesso. O guia musical sobre a peça fez até um comentário sobre o texto, este impublicável, lógico... rs...
É, pessoal, bons tempos aqueles.... Após os shows, saíamos para comemorar em lanchonetes, pizzarias (paulistano adora pizzaria, vcs sabem...). Era um verdadeiro mar de 15 ou 20 mesas, a maior cantoria, nós fechávamos, literalmente, o local... Fizemos muito isso também em shoppings: uma vez, no Eldorado, cada um se aproximou, de mansinho, da amurada que dá, geralmente, para a praça central ou a dos elevadores. Todos arrumados e quietos, o regente deu o tom e começamos a cantar, de inesperado. Todos que passavam se espantaram e se maravilharam com a surpresa... rs... Um verdadeiro sucesso...
Não sei se aqui em Brasília os corais têm essa envergadura, essa descontração que tanto me maravilhou no Coral da USP, mas recomendo a todos que passem por essa experiência musical, uma verdadeira viagem ao âmago da sensibilidade do ser humano.
Assim o é.